terça-feira, 8 de abril de 2008

nova vida

avançou pobre e rasgado, mas com o orgulho de ser já veterano nestas andanças da vida na rua e da sobrevivência do nada para a pessoa que viu na rua, para pedir um pouco da sua aparente riqueza!

não pedia para viver, mas para sobreviver! para passar mais um dia, com frio, sem conforto, sem local onde ficar… mas com menos fome!

foi rechaçado mesmo antes de chegar perto do homem com um sonoro vadios! deviam morrer todos…, que não lhe pareceu mal, já estava habituado a que lhe desejassem a morte desde que nasceu!

mas houve algo naquele momento que lhe havia de ficar na memória para sempre… o homem a quem se dirigiu proferiu estas palavras mas parou, apenas por um momento parou e olhou-o nos olhos e ele sentiu um calafrio, como se tivesse acabado de ser olhado por um completo estranho, que não o devia ser e teve a certeza que os seus caminhos ainda voltariam a cruzar-se… só o tempo haveria de lhe dar razão!

nesse dia não comeu, pois não conseguiu arranjar coragem para pedir dinheiro ou comida a ninguém mais… aquele momento foi o principio de uma nova vida!

terça-feira, 4 de março de 2008

a vida

nasceu em dia incerto, numa perdida província de Portugal, no meio de uma noite fria e a mãe não teve nenhuma ajuda, este só todo o tempo que durou o parto! o pai? esse estava por fora, com os amigos ou as amigas!

nasceu sem futuro, nem perspectivas de poder vir a ter um…

enquanto bebé foi muito protegido…

protegido pelo pai, que trabalhava dia e noite, mas mantinha a disciplina com mão de ferro; tinha de comer tudo o que lhe era colocado à frente sem reclamar nem fazer birras, tinha de aprender a ler antes de ter idade para andar…

protegido pela mãe, que lhe queria todo o bem do mundo, mas não sabia bem o que havia de fazer com um bebé nos braços… era demasiado nova para cuidar de uma criança… até mesmo de si própria, mas fez o melhor que pode…

protegido por toda a família que via nele a salvação da mediocridade a que estavam rendidos; queriam ser grandiosos, mas eram todos menos que alguém e isso não os deixava contentes… viam nele o futuro brilhante que todos queriam ter tido e nenhum atingiu, como se fosse possível prever a grandiosidade de uma criança só porque alguém assim o deseja!

se em bebé já era muito protegido, quando chegou a idade de ir para a rua brincar com as outras crianças da sua idade e ele começava a pensar que poderia ter alguma liberdade, tudo piorou! ainda era quase um bebé, tinha apenas 4 ou 5 anos, mas era forçado a aprender, a estudar aquilo que a família desejava; já lia bem e escrevia o seu nome e o dos familiares mais próximos na sua letra tosca, mas não tinha o que desejava, liberdade para brincar com aqueles a quem um dia sonhou chamar amigos…

para mais teve azar na vida; nasceu canhoto e assim seria, sem nenhum mal até ao final da sua vida se um tio, a quem obrigaram a começar a escrever com a mão direita não pensasse no mesmo para ele… aos 4 anos levava cinturadas e palmadas cada vez que pegava na caneta ou até mesmo na colher da sopa que detestava com a mão esquerda! aos 5 anos já fazia tudo com a mão direita, mas já se tinha fechado no seu mundo, já não havia retorno possível!

nunca brincou na rua com os seus amigos

6 anos… ao contrário das outras crianças, ansiava por este dia!

na escola certamente teria a liberdade que tanto desejava, poderia correr, brincar e jogar à bola e aquilo que mais ansiava… poderia arranjar amigos! oh, que felicidade seria!

não pensem que não queria aprender, queria e desejava muito também isso; mas ter amigos… era isso que o fazia sonhar com a escola!

em casa, nas semanas anteriores ao desejado dia vivia-se um inesperado frenesim, algo que ele não percebia bem! a ma~e não o largava um minuto e o pai, normalmente distante, andava estranhamente afectuoso… até o levou ao parque um dia!!!

quando chegou o desejado dia, percebeu a razão de tanto movimento à sua volta… ele não iria para a mesma escola dos restantes meninos da sua rua… iria para uma escola distante, onde ninguém ria, ninguém corria e muito menos jogavam à bola!

com apenas seis anos, entrou para um colégio militar interno… os pais acharam que educá-lo daria demasiado trabalho…

ele chegou à escola… internato… quartel; enfim, nem um adulto saberia como qualificar as instalações onde se encontrava, muito menos o saberia uma criança de 6 anos!

ele sabia como se sentia; abandonado era o sentimento que o envolvia, pelos pais, pela família, pelo mundo!

foi com esse sentimento na alma que lhe foi apresentado o seu superior… chamavam-lhe professor, mas pela forma de estar e de se apresentar desde logo ele pensou num corrector e não num professor: costas muito direitas, voz áspera e um tom autoritário. tinha acabado de conhecer o homem que o devia educar na ausência dos pais, o senhor vaz que insistia, não percebia ele porquê em ser tratado por sargento vaz e que acabasse todas as frases com um “senhor” em voz bem alta…

ao primeiro dia apenas conheceu o sr. vaz e o refeitório, onde em incessante fila indiana tinham direito, ele e todos os outros proscritos das famílias a uma sopa, um prato de comida, que ninguém conseguia saber o que era, um copo de água e uma peça de fruta. nenhum destes itens era negociável, só podiam comer isto e tinham de comer tudo, gostassem ou não… chamavam-lhe incutir o respeito pelos mais velhos, logo e por definição, superiores!

à noite, conheceu um mundo novo que lhe deu algum alento e esperança que ali nem tudo teria de ser mau! finalmente conhecia outros da sua idade; dormiam cerca de 20 a 25 no seu quarto… uma camarata, o que é fácil de ver, o fez feliz!

mas a felicidade é sempre efémera e dura sempre muito menos do que o que desejamos. assim que entraram, todos juntos, na camarata e ele pensou que por uma vez poderia falar com os outros meninos e fazer amigos, foi-lhes de imediato ordenado que se deitassem e apagaram todas as luzes! todos estavam com medo ali, tal como ele… e ninguém falou nessa noite!

estava pela primeira vez na vida num local com outras crianças da sua idade… tenho em crer que até algum momento ele pensou ser a única criança do mundo, pois nunca tinha visto nenhuma.

estava pela primeira vez num local com crianças das sua idade… dormia num quarto enorme com algumas delas… e nunca podia conversar com elas! ainda tentou algumas vezes meter conversa, mas tinha sempre apenas silêncio de resposta…

mas ele queria sentir o que era calor humano, queria fazer amigos… de tal forma desesperada que tentou algo que nunca tinha sido ensinado. no meio da noite saiu da sua cama e foi ter com um colega que lhe parecia desejar falar tanto quanto ele! e tinha razão, o guilherme, desde logo apelidado de gui com muita afeição, tornou-se no seu melhor e único amigo no mesmo momento em que se olharam!

mas eles não estavam num local onde pudessem conversar à vontade e assim, na terceira noite de companhia, aventuraram-se e saíram para ver a lua e as estrelas, mas o que viram logo à saída do dormitório foi o sr. vaz, o sargento vaz, que os mandou de imediato para a cama com a promessa de um castigo pela manhã!

o castigo foi físico, doloroso e duradouro!

o senhor vaz estava realmente mal disposto quando os foi buscar a ambos, às 5 da manhã e os obrigou a vestir em completo silêncio e também em completo silêncio sair da camarata e acompanhá-lo pelos campos!

foram ter a um extenso campo com apenas uma construção no centro, aparentemente outra camarata e o sargento explicou-lhes que o castigo castigo existia para formá-los como homens, algo que as crianças não perceberam! … mas algo que tinham de cumprir…

entraram no edifício e como se adultos fossem, o sargento vaz ordenou-lhes que fossem para os quartos, que ficaram a saber eram dos oficiais da escola e começassem a arrumar as camas, que propositadamente tinham já ficado desfeitas… nesse dia, as duas crianças fizeram e voltaram a fazer as camas dos oficiais até o senhor vaz achar que ja era suficiente; faltaram à escola, não viram ninguém todo o dia… acabaram extenuados e no final ele perguntou a si próprio…

será que os seus pais sabiam daquilo? certamente que sim, afinal tinham sido eles a enviá-lo para lá!

será que se importavam como que lhe acontecia?…

o tempo passou e a situação não melhorou… continuava a sentir-se um estranho na pele que ocupava.

ainda com terna idade, ainda um bebé demasiado crescido para a sua idade tentou integrar-se numa sociedade na qual verificava sem dúvida nenhuma, não estar preparada para ele!

fez tudo o que podia para ser expulso e poder voltar para a sua extremosa e para o seu pai ausente, mas por muito que tentasse, por muitas vezes que chamassem os seus pais para o levar… estes pagavam sempre mais e mais para não ter de o levar para casa…

mais uma vez, teve a sensação que os pais fariam tudo para não ter de o ver! não era a primeira vez que o sentia e certamente não seria a última!

ao contrário do habitual, sentia-se um lobo em pele de cordeiro…

e o tempo passou e a sua adaptação à vida que lhe tinham escolhido não melhorou!

lutou por se integrar, lutou para ser igual aos outros, mas ele era diferente… muito diferente!

acabou por se resignar ao seu destino; depois da cena com o guilherme e o sr. vaz, nunca mais teve amigos, refugiou-se no seu mundo e habituou-se a ser gizado, batido, molhado… alvo de todas as chacotas e brincadeiras dos colegas que nunca perdiam uma oportunidade para o lembrar que ele era diferente deles e que o incluiam nas suas vidas apenas por obrigação dos superiores e em forma de desprezo!

tudo piorava a cada dia, a cada visita que todos os colegas tinham e ele não! os pais não o visitavam, talvez achassem perda de tempo sair do conforto das suas vidas e do seu lar para visitar tão incómoda pessoa… se é que o consideravam uma pessoa!

talvez por isso naquele dia fugiu; não através da sua mente, isso era algo que fazia diariamente.

depois da hora de recolher obrigatório de mais um dia de sofrimento à mão de professores, colegas e todos os que o rodeavam, juntou junto a si aquilo que realmente estimava; dois livros, um grosso bloco para escrever e um par de canetas e saiu na calada da noite sabendo que nunca mais voltaria aquele lugar, mas que talvez um dia viesse a ter saudades…

fugiu… fugiu até não poder correr correr mais e então andou… andou até não conseguir aguentar nem outro passo além de todos os que já o tinham afastado do seu inferno!

talvez o procurassem, pensou! e se o procurassem, talvez o encontrassem… certamente que da escola informariam os pais; não que se importassem, mas porque a isso eram obrigados, afinal quando lá tinha sido despejado pelos pais, passaram a ser responsáveis por ele… como se necessitasse que alguém se responsabilizasse por ele!

pensou em continuar a fugir para não poder ser encontrado, mas pensou e soube que os pais não o procurariam! soube que os pais ficariam aliviados por ele ter desaparecido! certamente fingiriam preocupações e choros durante alguns dias, mas depois voltariam à sua alegre vida, como se ele nunca tivesse existido, afinal como sempre se comportaram!

ficou ali, quieto no escuro, sem comida e sem bebida… não se tinha lembrado que teria continuar a comer e beber depois de fugir do seu inferno… mas pela primeira vez na vida sentia-se feliz; era livre…

sozinho, abandonado, faminto, fugitivo… feliz!

foi assim que aos 9 anos de idade, passou a viver na rua. não tinha nada, mas de nada precisava, alimentava-se do que encontrava e do que algumas almas caridosas, que ao ver uma criança na rua, lhe iam dando!

sobreviveu durante muito tempo desta forma; quanto não sabe dizer… sabe que durante algum desse tempo foi feliz, mas com uma ponta de desapontamento… tinha razão, ninguém o procurou! olhava para as televisões nas montras com um misto de medo e esperança… medo de se ver nas notícias, de saber que era procurado e esperança de estar enganado e que os pais afinal se preocupassem com ele… mas tinha razão, ninguém o procurou!

com o tempo, a felicidade desvaneceu-se, a vida real bateu-lhe à porta que não tinha. por esta altura já estava marcado pelo tempo, pelo sol e pelo frio, marcado por uma vida inteira de experiências que, sabia agora nunca ninguém devia ter!

acabou o encanto, morreu a criança, nasceu o homem!