nasceu em dia incerto, numa perdida província de Portugal, no meio de uma noite fria e a mãe não teve nenhuma ajuda, este só todo o tempo que durou o parto! o pai? esse estava por fora, com os amigos ou as amigas!
nasceu sem futuro, nem perspectivas de poder vir a ter um…
enquanto bebé foi muito protegido…
protegido pelo pai, que trabalhava dia e noite, mas mantinha a disciplina com mão de ferro; tinha de comer tudo o que lhe era colocado à frente sem reclamar nem fazer birras, tinha de aprender a ler antes de ter idade para andar…
protegido pela mãe, que lhe queria todo o bem do mundo, mas não sabia bem o que havia de fazer com um bebé nos braços… era demasiado nova para cuidar de uma criança… até mesmo de si própria, mas fez o melhor que pode…
protegido por toda a família que via nele a salvação da mediocridade a que estavam rendidos; queriam ser grandiosos, mas eram todos menos que alguém e isso não os deixava contentes… viam nele o futuro brilhante que todos queriam ter tido e nenhum atingiu, como se fosse possível prever a grandiosidade de uma criança só porque alguém assim o deseja!
se em bebé já era muito protegido, quando chegou a idade de ir para a rua brincar com as outras crianças da sua idade e ele começava a pensar que poderia ter alguma liberdade, tudo piorou! ainda era quase um bebé, tinha apenas 4 ou 5 anos, mas era forçado a aprender, a estudar aquilo que a família desejava; já lia bem e escrevia o seu nome e o dos familiares mais próximos na sua letra tosca, mas não tinha o que desejava, liberdade para brincar com aqueles a quem um dia sonhou chamar amigos…
para mais teve azar na vida; nasceu canhoto e assim seria, sem nenhum mal até ao final da sua vida se um tio, a quem obrigaram a começar a escrever com a mão direita não pensasse no mesmo para ele… aos 4 anos levava cinturadas e palmadas cada vez que pegava na caneta ou até mesmo na colher da sopa que detestava com a mão esquerda! aos 5 anos já fazia tudo com a mão direita, mas já se tinha fechado no seu mundo, já não havia retorno possível!
nunca brincou na rua com os seus amigos…
6 anos… ao contrário das outras crianças, ansiava por este dia!
na escola certamente teria a liberdade que tanto desejava, poderia correr, brincar e jogar à bola e aquilo que mais ansiava… poderia arranjar amigos! oh, que felicidade seria!
não pensem que não queria aprender, queria e desejava muito também isso; mas ter amigos… era isso que o fazia sonhar com a escola!
em casa, nas semanas anteriores ao desejado dia vivia-se um inesperado frenesim, algo que ele não percebia bem! a ma~e não o largava um minuto e o pai, normalmente distante, andava estranhamente afectuoso… até o levou ao parque um dia!!!
quando chegou o desejado dia, percebeu a razão de tanto movimento à sua volta… ele não iria para a mesma escola dos restantes meninos da sua rua… iria para uma escola distante, onde ninguém ria, ninguém corria e muito menos jogavam à bola!
com apenas seis anos, entrou para um colégio militar interno… os pais acharam que educá-lo daria demasiado trabalho…
ele chegou à escola… internato… quartel; enfim, nem um adulto saberia como qualificar as instalações onde se encontrava, muito menos o saberia uma criança de 6 anos!
ele sabia como se sentia; abandonado era o sentimento que o envolvia, pelos pais, pela família, pelo mundo!
foi com esse sentimento na alma que lhe foi apresentado o seu superior… chamavam-lhe professor, mas pela forma de estar e de se apresentar desde logo ele pensou num corrector e não num professor: costas muito direitas, voz áspera e um tom autoritário. tinha acabado de conhecer o homem que o devia educar na ausência dos pais, o senhor vaz que insistia, não percebia ele porquê em ser tratado por sargento vaz e que acabasse todas as frases com um “senhor” em voz bem alta…
ao primeiro dia apenas conheceu o sr. vaz e o refeitório, onde em incessante fila indiana tinham direito, ele e todos os outros proscritos das famílias a uma sopa, um prato de comida, que ninguém conseguia saber o que era, um copo de água e uma peça de fruta. nenhum destes itens era negociável, só podiam comer isto e tinham de comer tudo, gostassem ou não… chamavam-lhe incutir o respeito pelos mais velhos, logo e por definição, superiores!
à noite, conheceu um mundo novo que lhe deu algum alento e esperança que ali nem tudo teria de ser mau! finalmente conhecia outros da sua idade; dormiam cerca de 20 a 25 no seu quarto… uma camarata, o que é fácil de ver, o fez feliz!
mas a felicidade é sempre efémera e dura sempre muito menos do que o que desejamos. assim que entraram, todos juntos, na camarata e ele pensou que por uma vez poderia falar com os outros meninos e fazer amigos, foi-lhes de imediato ordenado que se deitassem e apagaram todas as luzes! todos estavam com medo ali, tal como ele… e ninguém falou nessa noite!
estava pela primeira vez na vida num local com outras crianças da sua idade… tenho em crer que até algum momento ele pensou ser a única criança do mundo, pois nunca tinha visto nenhuma.
estava pela primeira vez num local com crianças das sua idade… dormia num quarto enorme com algumas delas… e nunca podia conversar com elas! ainda tentou algumas vezes meter conversa, mas tinha sempre apenas silêncio de resposta…
mas ele queria sentir o que era calor humano, queria fazer amigos… de tal forma desesperada que tentou algo que nunca tinha sido ensinado. no meio da noite saiu da sua cama e foi ter com um colega que lhe parecia desejar falar tanto quanto ele! e tinha razão, o guilherme, desde logo apelidado de gui com muita afeição, tornou-se no seu melhor e único amigo no mesmo momento em que se olharam!
mas eles não estavam num local onde pudessem conversar à vontade e assim, na terceira noite de companhia, aventuraram-se e saíram para ver a lua e as estrelas, mas o que viram logo à saída do dormitório foi o sr. vaz, o sargento vaz, que os mandou de imediato para a cama com a promessa de um castigo pela manhã!
o castigo foi físico, doloroso e duradouro!
o senhor vaz estava realmente mal disposto quando os foi buscar a ambos, às 5 da manhã e os obrigou a vestir em completo silêncio e também em completo silêncio sair da camarata e acompanhá-lo pelos campos!
foram ter a um extenso campo com apenas uma construção no centro, aparentemente outra camarata e o sargento explicou-lhes que o castigo castigo existia para formá-los como homens, algo que as crianças não perceberam! … mas algo que tinham de cumprir…
entraram no edifício e como se adultos fossem, o sargento vaz ordenou-lhes que fossem para os quartos, que ficaram a saber eram dos oficiais da escola e começassem a arrumar as camas, que propositadamente tinham já ficado desfeitas… nesse dia, as duas crianças fizeram e voltaram a fazer as camas dos oficiais até o senhor vaz achar que ja era suficiente; faltaram à escola, não viram ninguém todo o dia… acabaram extenuados e no final ele perguntou a si próprio…
será que os seus pais sabiam daquilo? certamente que sim, afinal tinham sido eles a enviá-lo para lá!
será que se importavam como que lhe acontecia?…
o tempo passou e a situação não melhorou… continuava a sentir-se um estranho na pele que ocupava.
ainda com terna idade, ainda um bebé demasiado crescido para a sua idade tentou integrar-se numa sociedade na qual verificava sem dúvida nenhuma, não estar preparada para ele!
fez tudo o que podia para ser expulso e poder voltar para a sua extremosa e para o seu pai ausente, mas por muito que tentasse, por muitas vezes que chamassem os seus pais para o levar… estes pagavam sempre mais e mais para não ter de o levar para casa…
mais uma vez, teve a sensação que os pais fariam tudo para não ter de o ver! não era a primeira vez que o sentia e certamente não seria a última!
ao contrário do habitual, sentia-se um lobo em pele de cordeiro…
e o tempo passou e a sua adaptação à vida que lhe tinham escolhido não melhorou!
lutou por se integrar, lutou para ser igual aos outros, mas ele era diferente… muito diferente!
acabou por se resignar ao seu destino; depois da cena com o guilherme e o sr. vaz, nunca mais teve amigos, refugiou-se no seu mundo e habituou-se a ser gizado, batido, molhado… alvo de todas as chacotas e brincadeiras dos colegas que nunca perdiam uma oportunidade para o lembrar que ele era diferente deles e que o incluiam nas suas vidas apenas por obrigação dos superiores e em forma de desprezo!
tudo piorava a cada dia, a cada visita que todos os colegas tinham e ele não! os pais não o visitavam, talvez achassem perda de tempo sair do conforto das suas vidas e do seu lar para visitar tão incómoda pessoa… se é que o consideravam uma pessoa!
talvez por isso naquele dia fugiu; não através da sua mente, isso era algo que fazia diariamente.
depois da hora de recolher obrigatório de mais um dia de sofrimento à mão de professores, colegas e todos os que o rodeavam, juntou junto a si aquilo que realmente estimava; dois livros, um grosso bloco para escrever e um par de canetas e saiu na calada da noite sabendo que nunca mais voltaria aquele lugar, mas que talvez um dia viesse a ter saudades…
fugiu… fugiu até não poder correr correr mais e então andou… andou até não conseguir aguentar nem outro passo além de todos os que já o tinham afastado do seu inferno!
talvez o procurassem, pensou! e se o procurassem, talvez o encontrassem… certamente que da escola informariam os pais; não que se importassem, mas porque a isso eram obrigados, afinal quando lá tinha sido despejado pelos pais, passaram a ser responsáveis por ele… como se necessitasse que alguém se responsabilizasse por ele!
pensou em continuar a fugir para não poder ser encontrado, mas pensou e soube que os pais não o procurariam! soube que os pais ficariam aliviados por ele ter desaparecido! certamente fingiriam preocupações e choros durante alguns dias, mas depois voltariam à sua alegre vida, como se ele nunca tivesse existido, afinal como sempre se comportaram!
ficou ali, quieto no escuro, sem comida e sem bebida… não se tinha lembrado que teria continuar a comer e beber depois de fugir do seu inferno… mas pela primeira vez na vida sentia-se feliz; era livre…
sozinho, abandonado, faminto, fugitivo… feliz!
foi assim que aos 9 anos de idade, passou a viver na rua. não tinha nada, mas de nada precisava, alimentava-se do que encontrava e do que algumas almas caridosas, que ao ver uma criança na rua, lhe iam dando!
sobreviveu durante muito tempo desta forma; quanto não sabe dizer… sabe que durante algum desse tempo foi feliz, mas com uma ponta de desapontamento… tinha razão, ninguém o procurou! olhava para as televisões nas montras com um misto de medo e esperança… medo de se ver nas notícias, de saber que era procurado e esperança de estar enganado e que os pais afinal se preocupassem com ele… mas tinha razão, ninguém o procurou!
com o tempo, a felicidade desvaneceu-se, a vida real bateu-lhe à porta que não tinha. por esta altura já estava marcado pelo tempo, pelo sol e pelo frio, marcado por uma vida inteira de experiências que, sabia agora nunca ninguém devia ter!
acabou o encanto, morreu a criança, nasceu o homem!